quarta-feira, 29 de julho de 2009

VIVER A BEIRA II

Soure é o município da ilha do Marajó com mais investimento do poder público, por estar localizada frente a capital Belém. Os municípios do outro lado da ilha estão completamente esquecidos, sem luz, saneamento básico, água potável estabelecendo um nível precário de vida. Nem por isso nos sentimos privilegiados por estarmos em Soure, pois não há garantia. Qualquer lugar aqui na ilha é periférico.
Belém do menino Alfredo e o Marajó de Eutanásio. Duplo criado por Dalcidio Jurandir em seus romances da serie estremo norte. Alfredo vem a Belém para estudar e ser doutor. Inversamente saímos de Belém sabendo que devemos nos desintelectualizar para entrar no mundo marajoara. Um salto histórico que tem um peso incalculável em nosso cotidiano. Este salto separa a linguagem gesticulada, murmurada, gritada, da cultura oral, da linguagem escrita, desprovida de eloqüência e cristalizada na paginas dos livros. O marajoara esta entre o oral e o escrito, coexistindo nesta zona de ruptura ele produz sobretudo interações e passagens sucessivas.
Aquém e além de todos os programas de governos que entram e que saem o marajoara vive encharcado entre os seis meses de seca e seis de cheia. Com a boca roxa do roer açaí conta “causos”, acontecimentos cotidianos entre a natureza e o homem. Num tempo em que o ponteiro é o cabo do remo e o espaço mental o prumo da canoa. Num ele prolonga o corpo noutro ele prolonga a mente, de forma que o empirismo se sobrepõe a abstração.
Nesta condição ele se emancipa em situações particulares. Costuma dizer “conforme” ou simplesmente ficar calado diante de qualquer proposta que lhe façam. Suas decisões estão sempre em conformidade com o tempo presente, e se não ver ganhos imediatos facilmente se desinteressa. Esta atitude marajoara desmobiliza o saber cientifico ajustado a impessoalidades, vinculadas estritamente ao uso da razão acaba tornando-se metafísico. Passamos varias vezes por esta situação nos primeiros meses de ação em Soure por estarmos de certa forma engessada ao projeto. Incontáveis programações foram se esvanecendo por não entendermos a natureza do “conforme”.
Adaptamos-nos a realidade da comunidade e tentamos adequar um plano de intenção mais ajustado a realidade local. Este plano de intenção gerou tensão entre a coordenação, a realidade e a finalidade ou desejo da equipe. Deixando evidente a existência de dois processos criativos geradores de tensão e criatividade que apesar de distintos buscam o mesmo objetivo. De um lado privilegia-se a técnica, de outro a estética sendo a técnica critério de exclusão na estética, mas que, no âmbito do processo coletivo são determinantes para a finalização da proposta. Por conseguinte desenvolvemos as oficinas em dois espaços distintos. No cruzeirinho, oficinas de produção de roteiro, formação de atores e produção de máscaras. Na periferia, na ass. tambores do pacoval oficinas de sensibilização musical e construção de instrumentos percussivos. De um lado temos o cruzeirinho, entidade mantida com recurso próprio da Sra. Amelia, localizada no centro da cidade e, que recentemente tornou-se ponto de cultura, e de outro, a Ass. tambores do pacoval, entidade criada e mantida pela comunidade organizada do bairro do pacoval, na periferia de Soure,
No bojo deste conjunto de oficinas evidencia-se o papel das novas tecnologia como ferramenta de registro da memória oral presente na ilha, e como alteram as formas de retentativa e lembrança, mudam o próprio sentido do que é memória, impõe nova ordem nas formas tradicionais de compreender e agir sobre o mundo. Ao acionar pontos digitais registram na memória virtual da tecnologia velhas experiências. De outro lado os tambores que também ao toque dos dedos despertam sentidos estéticos e são constantemente retomados nas rodas de batuque, propõem ensinamentos repetidos em voz alta que preservam a circularidade dos costumes e memória cultural passadas através do gesto e da musica.
Estas experiências mixadas e reinterpretadas influenciam na memória pessoal e coletiva. Refletem-se na cultura, na ciência, nos valores e comportamentos que permeiam a idéias na cultura da diferença. Imbuído destes acontecimentos a arte experimenta a tensão dentro de si mesma, que impele o artista a uma reinvenção de valores. Desta maneira torna-se importante, dentro do coletivo, que os meios e estratégias para chega aos objetivos, se confundam com ele mesmo. Assim as discussões internas do grupo enquanto coletivo, muitas vezes, gerou mais polemica do que os próprios andamentos dos objetivos traçados. Enfim não existe o ponto de cultura indicado para residência, em conseqüência disto tivemos que fazer todas estas adaptações. As interações estéticas aconteceram mas, a residência em ponto de cultura , não. Ao final desta primeira fase do projeto, fica a sensação de desterro. De busca de sentido para o que é ´projeto´ afinal para a arte?

quinta-feira, 2 de julho de 2009

“VIVER A BEIRA”

A ESFINGE surge apos quatro horas navegando no rio amazonas, na Baía do Marajó e por terra mais cinqüenta minutos do porto de camará ao porto da balsa que fica em Salva-terra. Nesta cidade o branqueamento é mais notório, as misturas do português e do negro estão mais presentes. A cidade de Soure nos observa do outro lado. Entre Soure e Salvaterra passa o rio paracauari, famoso por engolir o navio Presidente Vargas embarcação que fazia linha direta para a capital Belém. Corre caudaloso melando os lábios de ambas cidades e adentra ao centro da ilha. No inverno seu volume cresce deixando a terra submersa. No verão desce dos campos, veloz, desentoca o jiju, o anujá, o mandubé entre outros peixes do mato e traz a fartura para os povos da beira.

Chegamos em Soure. O vento vindo do rio-mar entra na cidade distribuindo-se por entre os túneis das imensas arvores de mangueiras existentes nas ruas do centro. A predominância do negro aqui é maior, ouve-se os tambores soarem de longe, trazido pelo vento o som ecoa em várias línguas, várias nações, e, respeitosamente curvamo-nos diante desse fato em que a pluralidade se singulariza em um só coro, para assim sermos chamados a participar destas universalidades.

Estamos no atelier do Artista escultor Ronaldo Guedes, onde funciona a Associação Tambores do Pacoval. Esta comunidade situa-se na periferia de Soure e se organizou em busca de suprir necessidades comuns. Possuem sede própria, onde funciona uma lojinha de artesanato e ao final da tarde acontece uma roda de tambor em que participam várias gerações.

Em Soure temos um sistema de saneamento básico deficiente, com uma coleta de lixo feita em carroça puxada por búfalo. Este sistema por algum tempo foi suficiente, no entanto com o avanço do turismo a produção de dejetos aumentou. Assim nossa proposta para A.T.P(Associação Tambores do Pacoval) é a produção de instrumentos percussivos a partir da coleta de dejetos espalhados pelo meio ambiente da ilha.

Na primeira aula havia bastante pessoas entre adultos velhos e crianças. Entre estas se destacava uma senhor que não parou se tocar sua viola. Chama-se Regatão. Tudo mais toca com ele, os tambores, as maracás e o xeque-xeque. Vozes de novos e de velhos misturam-se à sombra de varias árvores nativas que chacoalham roçando uma as outras, como que dançando o encantado na natureza. Enquanto isso, o tempo é suprimido, o espaço enquadrado e o som encapsulado nas câmeras de filmar e fotografar no intuito de guardar um pouco deste momento.

Neste clima detalhamos nossa proposta. Como tarefa seguinte: coleta de um objeto sonoro encontrado no meio ambiente. Na outra aula, ninguém apareceu, exceto quatro crianças. Cada uma delas carregava um pedaço de tábua, sobre elas linhas de pesca esticadas, presas em ambas extremidades e suspensa da superfície por um sobressalto de isopor. Arranhavam o suposto instrumento como se este fosse feito da mais sublime matéria. O sonho. E era, e eles acreditam o suficiente na magia, e o atelier é a oficina deste sonho. Entretanto o percurso é perigoso como deve ser toda aventura. Temos que desenvolver nossas inteligências e usá-las para o bem. Serra elétrica, goivas que mais parecem adagas de tão afiadas, martelos que fazem os pregos desaparecer, lixas que acariciam a pele como um esmeril faminto, muitos são os perigos. É preciso ter cuidado. Assim os instrumentos vão surgindo entre olhares atentos e curiosos. Mais tarde apareceriam mais quatro convidados, desta feita houve a coleta de matéria orgânica, neste caso a taboca, planta semelhante ao bambu. Produzimos reco-recos.

A cada instrumento construído uma rodada de musica festeja a conquista de um sonho, constroem brincando, trabalham criando, inventam reinventando. Interagindo coletivamente investigam seu próprio trabalho não para apreender o traço da curva lenta de sua evolução, mas querem reencontrar as diferentes cenas onde desempenham papeis diferentes. Parecem caminhar no ritmo das marés com as fases da lua em uma lógica de mutação que só viemos a compreender com o tempo.

Este fator desmobilizou por varias vezes o programa de ação do projeto exigindo reformulação constante das ações. Experiências estéticas em estado bruto fora do formalismo sempre dificultam a similaridade de conceitos exigindo muito mais da inteligência racional. Estas vivências colocam-nos diante de um revigoramento de processos de ensino e aprendizagem, fundamentais para a formação cultural da personalidade artística em um mundo contemporâneo onde sabemos do valor da representação em vários momentos de decisão em nossas vidas.

KROM.